26/12/2010

GEAN GENET



Que homem foi este, para além do santo e do mártir que dele quiseram fazer? Passam cem anos sobre o seu nascimento, mas talvez não tenhamos ouvido tudo o que tinha para dizer



Parece estar-nos a dizer que não esconde nada. As mãos abertas enfrentam o jornalista, que, naquele quarto de hotel em 1957, lhe perguntava, uma vez mais, quem era. "Se eu estou sozinho, posso falar a verdade. Se estou com alguém, minto. Eu sou marginal", poderia ter-lhe respondido, como disse mais tarde a um amigo escritor, Tahar Ben Jelloun.
"Com excepção dos seus livros, não sabemos mais dele do que a data da sua morte, que ele imagina próxima", disse Rainer Werner Fassbinder, o realizador alemão que adaptou "Querelle de Brest".


 "A literatura não apagou a sua vida", diz Valter Hugo Mãe, autor de "o cu de jean genet", breve poema incluído em "contabilidade poesia 1996-2010" e que começa assim: "ninguém podia acreditar que Jean Genet tivesse ganho asas líquidas, escuras como o fundo dos mares, e pairasse sobre os pensamentos menos cautelosos dos homens."

Valter Hugo Mãe diz que o autor francês não teve "a biografia ridícula e vaidosa da maior parte dos autores". "Era um escritor que não escondia nada, que lidava consigo mesmo propondo-se como vítima, mas que se perseguia, como se se quisesse magoar", acrescenta. "insatisfeito, retomava as marés às escuras asas e alava novamente, ondulando e aspergindo o chão com os olhos, sempre ávido de mais", conclui o poema. "Há um discurso incendiário e impiedoso, onde ele é vítima e predador. E, erguendo esse paradoxo, consegue chegar a várias pessoas com temáticas fortíssimas e extremamente amargas", diz ainda Valter Hugo Mãe.

Parece estar-nos a dizer que não esconde nada. As mãos abertas enfrentam o jornalista, que, naquele quarto de hotel em 1957, lhe perguntava, uma vez mais, quem era. "Se eu estou sozinho, posso falar a verdade. Se estou com alguém, minto. Eu sou marginal", poderia ter-lhe respondido, como disse mais tarde a um amigo escritor, Tahar Ben Jelloun.

"Com excepção dos seus livros, não sabemos mais dele do que a data da sua morte, que ele imagina próxima", disse Rainer Werner Fassbinder, o realizador alemão que adaptou "Querelle de Brest".

Mas Jean Genet, abandonado pela mãe num orfanato em Paris, com menos de um ano, foi uma figura maior, que não cabia nos seus próprios livros. "Mau rapaz autodidacta", Jean podia ter sido uma personagem inventada por Genet -achava, aliás, que no teatro representamo-nos sempre a nós próprios ("Uma acção teatral não deve decorrer num palco mas em mim", disse).

E porque não acreditava na biografia, "em vida não queria que se lhe perguntasse sobre a sua vida", explica Pascal Fouché, que este ano, quando se assinalam os cem anos do nascimento do escritor, publicou em livro um conjunto de cartas inéditas da mãe do autor de "Un condamné à mort", uma lavadeira que morreria aos 30 anos com gripe espanhola.

Sem família nem raízes, a ideia de pátria horrorizá-lo-á, e é ao ambiente de uma infância que nunca teve que Jean Genet, por diversas vezes, regressará. Muitas das personagens das suas histórias, como Querelle, o marinheiro homossexual, ou Maurice, o prisioneiro em "Alta Vigilância", carregam nomes de amigos seus no orfanato. Há ainda Solange, uma das criadas na peça do mesmo nome, uma vizinha por quem Genet se apaixonou quando era criança.


"Falar é roubar palavras", escreveu Sartre em "Saint Genet, comédien et martyr", o monumental texto de introdução às "Obras Completas de Genet", editadas pela Gallimard. Poeta, dramaturgo, ensaísta, prosador, Genet foi, na literatura, polissémico. Mas foi ainda realizador de um filme só, "Un chant d"amour", que vai para lá da provocação que os seus conteúdos explícitos poderiam fazer, porque trata do desejo, num sentido mais primário, mais visceral e, por isso, mais humano.

O seu teatro continua a ser representado e entre as peças mais importantes estão "As Criadas" (o ano passado vimos a encenação de Jean-Luc Bondy no Festival de Almada) ou "Os Negros"(Rogério de Carvalho apresentou-a, em 2006, no Teatro Nacional S. João).


Os seus textos proporão, permanentemente, um outro mundo, uma outra realidade, outro conjunto de valores, onde se encontra, apesar de tudo, um desejo intrínseco de salvação dos homens, anjos caídos e negros.

"Era um anti-sistema, mas não era um delinquente puro e duro. Era um homem infinitamente culto, que fez da prisão a sua vida", descreve Jaime Rocha, que salienta o lado militante da cidadania, que o levará a abraçar causas como a dos Black Panters, um movimento revolucionário afro-americano influente nos Estados Unidos nas décadas de 60 e 70, e a causa palestiniana, ainda antes da era bombista. "Ele esteve sempre do lado da vítima", reforça.

E depois há Chatila, o campo de refugiados na Palestina. Genet foi o primeiro europeu a chegar. "Quatro horas em Chatila" resume bem o envolvimento que queria viver e a destruição do modelo social que queria construir. Jaime Rocha, reinventando esse livro, coloca-o a recordar-se: "Eu vi o sangue coalhado pelas ruas estreitas, rapazes e velhos palestinianos a quem cortaram as mãos e os braços, mulheres com as ancas trespassadas por facas, crânios abertos à machadada, olhos furados, barrigas esventradas, mortos, muitos mortos espalhados pelas ruelas, queimados, desmembrados, dezenas, centenas, dois dias e três noites de matança."

Depois disto, Genet não poderia esconder mais nada. Morreu na noite de 14 para 15 de Abril de 1986 num pequeno hotel de Paris. A sua campa, discreta em Marrocos (onde viveu os últimos anos), é o último gesto político de um homem sozinho.



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