14/05/2010

LHASA

Tão repentinamente como surgiu também assim partiu: Lhasa de Sela, cantora e compositora nascida em Nova Iorque, mas profundamente influenciada pela cultura mexicana, faleceu no dia 1 de Janeiro deste ano, aos 37 anos de idade, de um cancro da mama, contra o qual lutava há 21 meses. Deixou pai, mãe, irmãos, sobrinhos, e um culto de fãs indefectíveis, reflectido no milhão de cópias que os seus três discos venderam.

Lhasa é filha do escritor mexicano Alejandro Sela e da fotógrafa norte-americana Alexandra Karam. Com os pais viveu sete anos na estrada. Sete anos a bordo de uma caravana, em busca de palavras e imagens, acompanhada pelos pais e irmãs entre caminhos alcatroados ou a terra batida entre o México e os Estados Unidos. Uma vida sem destino traçado que a levou, pela separação dos pais, a San Francisco, para onde se mudou na companhia da mãe e se estreou a cantar Billie Holliday. Tinha 17 anos, e uma voz que já era capaz de sugerir melancolia e infinita tristeza.

Com uma das irmãs, muda-se, mais tarde, para o Canadá, onde conhece Yves Desrosiers. O guitarrista personagem-gatilho num processo de descoberta de uma personalidade única iniciado numa colaboração há seis anos no Festival de Jazz de Montreal, que agora se expressa através das canções registadas no soberbo e tocante «La Llorona».
O disco, integralmente cantado em castelhano, transporta-a para o México de seu pai e aos dias de estrada sem fim. Em busca das palavras e das imagens da senda incessante que acompanhava anos antes. E em «La Llorona» capta-as, num registo de sensibilidade cortante que vive, sobretudo, de uma voz que se exige descobrir. Uma voz que sofre, chora, encanta, sente e faz sentir.

Entre canções tradicionais mexicanas e originais embebidos em deserto e areia, Lhasa evoca paisagens largas, grandiosas, solarengas, quentes. Personagens estranhos, fantasmas, demónios. E tempos distantes. Tempos anteriores à colonização espanhola, através de lendas recordadas, entre elas a que dá titulo ao disco. A lenda de La Llorona, a esposa da serpente com penas Quetzal, que atraía, em noites quentes, os homens às margens dos rios com cantos melancólicos de forte carga erótica, para depois os beijar e transformar em pedra.

Lhasa poderia ser La Llorona. A sua voz atrai, esmaga, conquista. Só não transforma em pedra, caso contrário este texto teria sido bem mais difícil de escrever. Nada como dedos de carne e osso com articulações à mistura.
Essencialmente paisagista, o disco transporta-nos irremediavelmente para as latitudes que canta. Expressivas, voz e composição traçam o Mexico por linhas de som. «El Desierto», a canção que descodifica toda a carga do canto e música de Lhasa, é o momento do disco onde a cantora e o guitarrista canadiano que a acompanha nesta operação mais ousam o desafio da colisão das paisagens e tradições evocadas com o presente, num quadro que sugere imagens longas e belas.

Este será o momento onde Lhasa mais se destaca de todas as marcas da tradição do canto das rancheras que evoca claramente em todo o disco. Um momento que assimila e reinterpreta México, e deserto por linhas novas, suas, estilizadas. Uma antecâmara de uma obra que certamente poderá conhecer novo e mais ousado capítulo. " Lhasa - La llorona (23-08-1998, Diário de Notícias)by Nuno Galopin

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