15/05/2010

O GÉNIAL ÚNICO MAURICE BEJART

Maurice Béjart morreu a 22 de Novembro de 2007, aos 80 anos. "Le Presbytère n'a Rien Perdu de Son Charme Ni le Jardin de Son Éclat", o espectáculo que ontem chegou ao Coliseu dos Recreios, em Lisboa, foi criado dez anos antes e corresponde a um período criativo do coreógrafo que muitos consideram irrelevante e, de soslaio, relegam para a segunda linha da obra do coreógrafo nascido em Marselha, França, que foi para a Bélgica fundar uma companhia de dança revolucionária, a Mudra, onde estudaram, por exemplo, Anne Teresa de Keersmaeker e Maguy Marin.

Béjart é um nome fundamental para compreender aquilo a que hoje chamamos dança contemporânea. Filho de um filósofo, trouxe para a dança uma compreensão do corpo menos presa a uma ideia de beleza etérea, mais consciente da dimensão simbólica do movimento, e mais atenta também ao contexto social e político .

Depois de uma surpreendente estreia, em 1953, com "Symphonie Pour Un Homme Seul", em que um Béjart ao mesmo tempo coreógrafo e intérprete se violentava face às falsidades da dança neo-clássica, partiu para uma pesquisa que sobrepôs o pessoal ao movimento. Em 1959, em resposta a um convite da Théâtre Royal de La Monnaie, de Bruxelas, criou uma "Sagração da Primavera" que tinha dois "sacrificados", um homem e uma mulher, assumindo um movimento indiferente ao género; dois anos depois, criou um "Bolero" para Jorge Donn, seu companheiro, o corpo que de tanto dançar as coreografias de Béjart se tornou a imagem mais forte da dança béjartiana. Daí até 2007, houve de tudo. "Em Maurice há todo o tipo de espectáculos. Havia peças íntimas, criadas para a "pera de Paris, em que a pesquisa era muito mais precisa, e outras mais amplas, mas nem por isso menos pessoais", conta-nos, via telefone, Gil Roman, último companheiro de Maurice Béjart e actual director artístico do Béjart Ballet Lausanne.

De tudo, incluindo uma forte dimensão política. Maurice Béjart foi o primeiro coreógrafo a subir, em 1966, à Cour d'Honneur do Palácio dos Papas, centro nevrálgico do Festival de Avignon, para apresentar a peça "Romeu e Julieta", inspirada no slogan contracultural "Make love, not war". Foi essa peça que, dois anos depois, trouxe a Lisboa, numa noite em que ousou desafiar o regime de Salazar. Tendo a companhia atrás de si, subiu ao palco para anunciar o assassinato do candidato presidencial norte-americano Robert Kennedy e fazer um discurso contra a ditadura e a situação nas colónias. A PIDE ficou incomodada com o minuto de silêncio que Béjart pediu ao público. Às três da manhã forçou a companhia a sair do Hotel Borges, no Chiado, e escoltou-a até à fronteira espanhola.

A história vem contada num texto de José Medeiros Ferreira, incluído no livro comemorativo dos 50 anos da Fundação Calouste Gulbenkian, patrocinadora do espectáculo. Depois da revolução, ainda em 1974, Béjart regressou ao Coliseu dos Recreios para apresentar a mesma peça e, em 1998, Jorge Sampaio condecorou-o com a Grande Ordem do Infante D. Henrique.

A vida, não a sida

No caso de Béjart, quando falamos de uma dança espectacular falamos sobretudo da sua capacidade para produzir imagens: "As peças dele vão para muitos lados. Nunca foi importante fechá-las num só sentido e tentar perceber se era uma pesquisa sobre o corpo ou sobre o palco", diz Roman. "Le Presbytère..." corresponde a um período em que Béjart, depois de abraçar a espiritualidade oriental, começou a trabalhar uma ideia de espectáculo mais sensorial, menos agressiva. Não será, por isso, ocasional, que a escolha de Béjart para a construção visual da peça tenha recaído, uma vez mais, no costureiro Gianni Versace. Queria recordar os vários amigos que havia perdido para a sida e, muito em particular, o seu companheiro Jorge Donn.

"Le Presbytère..." é, portanto, reacção a esses tempos terríveis em que toda uma geração perdeu a inocência, um pacto em nome da sobrevivência emocional. "Versace e Béjart tinham uma relação de cumplicidade e amizade muito profunda. A criação desta peça tocou-lhes particularmente. Gianni, como sempre, fazia vários esboços, e Maurice queria uma coisa muito mais simples. Trabalharam com esse objectivo. Maurice não queria que um ballet que falava da sida fosse triste; queria que se sustentasse na energia e que fosse, ao mesmo tempo, simples. Era importante que os figurinos não ocupassem todo o espaço, de modo a que o bailarino pudesse sentir-se livre para dançar", explica Roman.

Além de responder a esses figurinos, a coreografia de Béjart responde também a uma narrativa muito influenciada pela linguagem dos videoclips e, em particular, pela extravagância resistente dos Queen, cujo líder, Freddie Mercury, viria, também ele, a morrer vítima de sida em 1991. Tanto os Queen como Elton John estiveram, de resto, em palco na estreia do espectáculo em Paris, no Théâtre National de Chaillot, a 17 de Janeiro de 1997. Os videoclips, sim, mas "não só isso", alerta Gil Roman: "Béjart estava muito interessado no cinema, sempre esteve. Este espectáculo foi tratado como uma montagem cinematográfica". Continua: "É um ballet sobre o nascimento e a morte, a renascença em permanência. Não é um ballet sobre a sida, mas sobre os que morreram. Ele não queria servir-se dessa doença para fazer um espectáculo, queria mostrar a vida".

É justamente por isso que esta peça vai a mais sítios do que outras criações paralelas de uma geração que quis, através do seu trabalho, encontrar um caminho para um corpo em perigo de desaparecimento: "Still/Here" (1994), de Bill T. Jones, a inacabada "Noces d'Or" (1992), de Dominique Bagouet (que foi bailarino de Béjart e cujas últimas peças tratavam do conflito entre a falta de tempo e a nostalgia do desconhecido), e mesmo "Meinwarts" (1984), de Raimund Hoghe.

"Béjart utilizava tudo o que estava à sua volta procurando essa intimidade", sublinha Gil Roman. Essa intimidade, palavra que Gil Roman vai repetindo ao longo da conversa com o Ípsilon, não soçobra perante o facto de este ser um espectáculo para estádios ou salas não convencionais. Como se usasse uma lupa para ampliar a reflexão que queria fazer sobre o movimento, Maurice Béjart recorre neste espectáculo à estratégia da aranha. À profusão de imagens produzidas pelos figurinos, pela música e pelo expressionismo generalizado, Béjart acrescenta uma tessitura filigrânica no plano do movimento que, muito provavelmente, passará despercebida a parte do público, mas que prolonga uma pesquisa sobre o simbolismo de um corpo em movimento.

Há, como havia noutras peças, um trabalho de resgate do movimento, e por consequência do corpo, da máquina opressiva do efeito. Mas há, sobretudo nesta peça, muito pela evidente reacção ao tema da sida, uma dupla reflexão que sujeita o sentido imediato a uma outra leitura. Gil Roman fala de "um motor que alimentou os últimos anos de criação de Maurice Béjart". A peça parece reunir um conjunto de elementos caros ao coreógrafo: implicação do corpo ao nível da exigência física, sobreposição de elementos semióticos (figurinos, música, movimento) numa espiral coreográfica que abre campo à interpretação abstracta mas que não esquece a vontade de evidenciar, atenção à construção geométrica do corpo em cena e à necessidade de o intérprete procurar soluções que o libertem dessa grelha.

Conta-nos Gil Roman que "Maurice procurava o sentido da forma". O mais importante, nota, "não era que o percebessem, mas que o seguissem": "O que o público vai ver é um espectáculo. Ele não dizia o que estava a fazer. Tímido como era, não afirmava, sugeria". E, mesmo sem ele, o espectáculo continua.

"Le Presbytère..." de Maurice Béjart, um dos mais influentes coreógrafos da segunda metade do século XX. Desde ontem, no Coliseu dos Recreios, é o corpo ausente, vítima da sida, que sobe ao palco.

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